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segunda-feira, 21 de dezembro de 2009
TOCAIA NO ASFALTO É RESTAURADO
quarta-feira, 9 de dezembro de 2009
TRUFFAUT: CINEASTA TERNO E AFETUOSO
Ao contrário do cinema de seus companheiros da Nouvelle Vague - Godard, Rohmer, Chabrol, Rivette, Resnais... racionalista e cerebral, o de François Truffaut é feito com a emoção e o coração, com extrema sensibilidade e uma simpatia incomum pelos seus personagens, que são tratados com ternura, generosidade e afeto. O crítico ferrenho, radical, intransigente, das revistas Cahiers du Cinema e Arts et Spetacules, que ataca em seus escritos o cinema clássico francês e o realismo psicológico de acadêmicos como Claude Autant Lara, Julien Duvivier, entre outros, sofre uma espécie de metamorfose quando passa a realizar filmes, transformando-se num cineasta terno e amável.
Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, cuja tradução literal é Os Quatrocentos Golpes), além de inaugurar a Nouvelle Vague – juntamente com Acossado, de Godard, Hiroshima, de Resnais... -, dá início à carreira de Truffaut como realizador de longas. E, neste 2009, a distância deste filme é de exatos 50 anos. Aqui também começa o ciclo dedicado a Antoine Doinel (sempre interpretado por Jean Pierre Léaud), um personagem com evidentes elementos autobiográficos, através do qual aborda o rito de passagem da infância à idade adulta. É a nostalgia da adolescência que Truffaut reflete nos filmes do ciclo Doinel, a fugacidade do tempo e a ânsia de amar, a chegada a idade adulta, o casamento... (Antoine et Colette, 1982, episódio de O Amor aos Vinte Anos/L’Amour a vints ans; Beijos Proibidos/Baisers Volés, 1968, Domicílio Conjugal/Domicile Conjugal, 1970, e; Amor em Fuga/L’Amour en Fuite, 1978).
(Em Os Incompreendidos, Truffaut, avant la lettre, considerando a época, alude à Nouvelle Vague e a seu amigo e colega Jacques Rivette, quando os pais de Antoine – que, por sinal, nos outros filmes do ciclo estão sempre ‘indo ao cinema’ – decidem ir ver Paris Nous Appartient, de Rivette, filme emblemático, apesar de pouco conhecido do movimento francês, e, de volta, no automóvel, consideram-no ‘muito bom’ – melhor homenagem impossível).
Romântico, sem, contudo, abandonar a visão irônica e dolorosa das relações afetivas, Truffaut tem a sua obra-prima já na terceira incursão longametragista: Uma Mulher para Dois/ Jules et Jim (1961), crônica de uma relação triangular (Oskar Werner, Jeanne Moreau...) baseada no texto literário de Henri Pierre Roché, autor que lhe serviria de inspiração para realizar, dez anos depois, abordando a mesma temática da dificuldade de amar, As Duas Inglesas e o Continente/ Les Deux Anglaises et le Continent (1971). O problema da comunicação no amor, aliás, do amor impossível, en fuite, é uma constante na filmografia de Truffaut, como revelam A História de Adele H/ L’Histoire de Adele H (1976), com Isabelle Adjani, A Mulher do Lado/ La Femme de la Cote (1981), entre outros.
Se seus colegas da Nouvelle Vague procuram elaborar uma linguagem que desconstrói o discurso cinematográfico tradicional, revertendo os cânones da lei de progressão dramática griffithiana, François Truffaut não pretende nunca em seus filmes dissolver a estrutura lingüística, mas, ao contrário, busca desesperadamente a fluência narrativa, o toque mágico capaz de envolver o espectador a fazê-lo pensar que não está no mundo’. É verdade que brinca com a metalinguagem, mas num sentido de reverência e ao cinema como em A Noite Americana/ La Nuit Americaine (1973), belíssima homenagem ao processo de criação cinematográfica onde Truffaut comparece como ele mesmo no papel de um diretor que faz um filme. O filme dentro do filme, portanto.
Outra vertente temática na obra truffautiana é a dominante policial, influência, na certa, de sua admiração por Alfred Hitchcock – seu livro de entrevista com este, Hitchcock/Truffaut, da Brasiliense (e, agora, em outra edição pela Cosac ou Companhia das Letras), é, simplesmente, uma aula magna de cinema. Há Hitchcock em Fareinheit 451 (1966), que faz na Inglaterra, com o mesmo Oskar Werner de Jules et Jim, baseado na ficção-científica de Ray Bradbury. Outra obra alusiva ao mestre é A Noiva Estava de Preto/ La Mariée Était em Noir (1967), com Jeanne Moreau ou, mesmo, Tirez sur le Pianiste, segundo filme (1960), e A Sereia do Mississipi/ La Sirene du Mississipi (1969), no qual declara, através das imagens em movimento, a sua paixão momentânea, Catherine Deneuve, que trabalha, aqui, ao lado de Jean Paul Belmondo. E no seu canto de cisne De Repente num Domingo/ Vivement Dimanche (1984), cujo ‘claro/escuro’, proposital, vem em auxílio de uma proposta estilística em função do film noir francês. Sem esquecer o elaborado, como mise-en-scène, Um só pecado (Le peau douce, 1963).Que, revisto agora, considero um dos melhores filmes do cineasta.
Autor, porque dono de um estilo próprio, marcante, ainda que com um universo temático diversificado, François Truffaut, na sua filmografia, envereda por assuntos diversos, a exemplo de O Garoto Selvagem/ L’Enfant Sauvage (1970), filme sobre a luta de um médico, no século XIX, para ‘domar’, um menino bárbaro criado sem contato com a civilização – influência possível para Werner Herzog em O Enigma de Kaspar Hauser. Na Idade da Inocência/ L’Argent de Poche (1976), experiência na qual, repetindo Jean Vigo (Zero de Conduite), o universo que retrata é constituído somente de crianças. Sem esquecer O Último Metrô/ Le Dernier Metro (1980), uma volta ao passado, Segunda Guerra Mundial na França ocupada, para valorizar, numa situação-limite, a importância dos pequenos gestos.
Em todos os filmes de François Truffaut, um denominador comum: a narrativa que sobrepuja a fábula, a doce fabulação que advém de um sentido preciso de mise-en-scène, o touch truffautiano, sempre terno, apaixonado, capaz de levar ao espectador o prazer do autor com o que está a filmar e o prazer, imenso, de se assistir ao que se está a ver.
quinta-feira, 3 de dezembro de 2009
NO TEMPO DO CINEMASCOPE
Se, com a entrada deste formato todos os cinemas tiveram que se adaptar a ele, com as lentes anamórficas e mudança de telas, os exibidores, no entanto, não modificaram as janelas dos projetores adequados para o Vistavision. Resultado: todos os filmes da Paramount (incluindo a maioria dos de Hitchcock) foram exibidos no Brasil cortados pelos lados. Somente agora, com as cópías em DVD é que, pela primeira vez, os brasileiros estão a ver os filmes em Vistavision na sua integridade.
Infelizmente, a maioria das pessoas tá pouco se lixando para o formato dos filmes. O que interessa é a história, a trama, a intriga. Fiquei estarrecido quando ouvi de um jovem que prefere ver os filmes dublados porque tem preguiça de ler as legendas. A incultura cinematográfica cresce a passos largos. O cinéfilo do pretérito virou um simples consumidor de filmes e, como já disse aqui, o ir ao cinema atualmente é diferente do ir ao cinema no passado. O ir ao cinema hoje é uma das fases do processo do 'shoppear'. Não se vai mais ao cinema, mas se vai ao shopping e, estando nele, ao cinema. Os consumidores, débeis mentais, não possuem, portanto, um propósito estabelecido a priori de ir ao cinema ver determinado filme. Entra-se numa sala 'multiplexada' por causa de um cartaz, de um rosto bonito, de determinado ator ou atriz ou pela sugestão da ação, violência e sexo.
Era uma outra cultura, uma outra época. O cinema como casa de espetáculos já morreu e está devidamente morto e enterrado.
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
ESQUEMA NOVO ANUCIA OS VENCEDORES DE 2009
Por Jean Romeiro
Os longas “Loveless” e “A Casa de Sandro” também foram premiados: o primeiro, dirigido por Cláudio Gonçalves (RJ) recebeu menção honrosa “pela composição dos planos e o tratamento rigoroso de enquadramento e decupagem”, enquanto Gustavo Beck foi escolhido o Melhor Diretor por “A Casa de Sandro” (RJ), ambos pelo júri de premiação.
As produções cearenses também se destacaram nesta mostra. O diretor Guto Parente (CE), que conquistou em 2008 o prêmio de Melhor Curta do CEN por “Espuma e Osso”, foi contemplado neste ano com a Melhor Direção por “Passos No Silêncio” e recebeu o prêmio de Melhor Argumento Experimental, para “Flash Happy Society”. A Melhor montagem foi para outro cearense, “Muro”, de Tião.
Já o Troféu CineEsquemaNovo, concedido pela organização do festival, foi entregue para Carlosmagno Rodrigues (MG), “pela consolidação de uma obra que é acompanhada pelo festival desde a sua primeira edição”.
MELHOR LONGA-METRAGEM – JÚRI DE PREMIAÇÃO“Ressaca”, de Bruno Vianna (RJ / 2009 – 75:00)
Comentário do Júri: “Pela direção dos atores, a força das cenas e o experimento realizado com a montagem ao vivo”.
MELHOR CURTA ou MÉDIA-METRAGEM – JÚRI DE PREMIAÇÃO“Sweet Karolynne”, de Ana Bárbara Ramos (PB /2009 – 15:00)
Comentário do Júri: “Pelo modo como o filme se aproxima com delicadeza e inteligência de seu personagem e tema. Destaca-se a maneira como o filme dessacraliza a morte e elogia a vida”.
MELHOR LONGA-METRAGEM – JÚRI POPULAR“Ressaca”, de Bruno Vianna (RJ / 2009 – 75:00)Média: 4,115
MOSTRA DE CURTAS E MÉDIAS – JÚRI POPULAR – PRIMEIRO LUGAR“Perto de Casa”, de Sérgio Borges (MG / 2009 – 09:30)Média: 4,078
MOSTRA DE LONGAS-METRAGENS – JÚRI DE PREMIAÇÃO – MELHOR ATORJoão Pedro Zappa, por “Ressaca”, de Bruno Vianna (RJ / 2008 – 100:00)
Comentário do Júri: “Pela delicadeza e competência na construção de seu personagem”.
MOSTRA DE LONGAS-METRAGENS – JÚRI DE PREMIAÇÃO – MELHOR DIRETOR Gustavo Beck, diretor de “A Casa de Sandro” (RJ / 2009 – 75:00)
Comentário do Júri: “Pelo rigor narrativo e pelas composições temporais e pictóricas. Existe no filme uma investigação em torno da distância entre personagem e narrador”.
MOSTRA DE CURTAS E MÉDIAS – JÚRI DE PREMIAÇÃO – MELHOR DIREÇÃO“Passos No Silêncio”, de Guto Parente (CE /2008 – 17:00)
Comentário do Júri: “Pela construção da narrativa em seu mergulho no intraduzível da poesia”.
Comentário do Júri: “Montagem através da qual o filme efetiva uma forma potente de evocação de sentidos.”
Comentário do Júri: “Pela construção de uma narrativa imagético-sonora e pela experiência com imagens do cotidiano”.
Comentário do Júri: “pela composição dos planos e o tratamento rigoroso de enquadramento e decupagem”
MOSTRA DE CURTAS E MÉDIAS – JÚRI DE PREMIAÇÃO – MENÇÃO HONROSAPara Matheus Rocha, Diretor de Fotografia de “A arquitetura do Corpo”, de Marcos Pimentel (MG / 2008 – 21:00)
Comentário do Júri: “pela precisão e expressividade da fotografia”
MOSTRA DE CURTAS E MÉDIAS – JÚRI DE PREMIAÇÃO – MENÇÃO HONROSAPerto de Casa, de Sérgio Borges (MG /2009 – 09:30)
Comentário do Júri: “Pela atenção à picardia e pela felicidade na relação cinema, família e mundo”
TROFÉU CINE ESQUEMANOVO – JÚRI EQUIPE ORGANIZADORA DO CEN
Carlosmagno Rodrigues (MG)
Justificativa: “pela consolidação de uma obra que é acompanhada pelo festival desde a sua primeira edição”.
MOSTRA DE LONGAS-METRAGENS – PRÊMIO DA NOVA CRÍTICA (Júri Alunos da Oficina de Crítica Cinematográfica)“Ressaca”, de Bruno Vianna (RJ / 2009 – 75:00)
Justificativa: Pela criação de um dispositivo inovador, que está à serviço de uma experiência estética única.
MOSTRA AULA DE CINEMA – JÚRI POPULAR – 1º LUGAR“1978”, de Tyrell Spencer e André Garcia (Unisinos/RS, 2009 – 05:00)Média: 4,275
MOSTRA AULA DE CINEMA – JÚRI POPULAR – 2º LUGAR“Hollywood”, de Laura Montalvão, Marcos Serafim e Thiago Benites (FAP/PR, 2009 – 08:17)Média: 3,774
Mostra Itinerante pelo Brasil
O CEN 2009 traz parte da sua programação para lojas da Livraria Cultura por todo o Brasil. De 29 a 31 de outubro, serão exibidos filmes selecionados e premiados nas mostras competitivas do festival este ano: Mostra de Curtas e Médias-Metragens e Mostra Aula de Cinema. O evento ocorre simultaneamente em Porto Alegre, São Paulo, Brasília, Recife e Campinas, com sessões na quinta e sexta-feira, às 18h e 20h e no sábado às 16h, 18h e 20h.
Sobre o CineEsquemaNovo 2009.
A sexta edição do CineEsquemaNovo – Festival de Cinema de Porto Alegre (CEN) aconteceu de 17 a 24 de outubro, Porto Alegre, na Sala P.F. Gastal, o Cine Santander Cultural e o Cine Bancários.
O festival é organizado por Alisson Avila, Gustavo Spolidoro, Jaqueline Beltrame, Morgana Rissinger e Ramiro Azevedo. Conta com o financiamento da Lei Federal de Incentivo à Cultura e patrocínio da Petrobras. Co-realização da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, através da Coordenação de Cinema, Vídeo e Fotografia da Secretaria Municipal de Cultura. Apoio especial: Santander Cultural. Apoio: Cine Bancários e Livraria Cultura.
Conta com colaboração especial da Nau, Tokyo Filmes e Procempa. Apoio de mídia da MTV, RBS TV e TV Com, TVE, Cine Brasil TV, Ulbra TV, TV Unisinos, Pop Rock, FM Cultura, Unisinos FM, Tordesilhas, Estação Elétrica e Academia de Filmes. Apoio de produção do Master Hotéis, Farofa, Aquavit, Via Imperatore, Atelier de Massas, Copacabana, Sharin, Shullas e Bar do Beto.
terça-feira, 1 de dezembro de 2009
ROBERT MULLIGAN: CINEASTA DA EVOLUÇÃO
Robert Mulligan: cineasta da evocação
Mulligan, após Vencendo o medo, passa três anos a esperar a oportunidade de dirigir o seu segundo longa, ainda que, neste interregno, tenha trabalho muito em episódios e seriados da televisão americana. É um cineasta oriundo da tv, mais liberto das normas pétreas dos estúdios, assim como Sidney Lumet, que com mais de 80 anos dirigiu um dos melhores filmes de 2008: Antes que o diabo saiba que você está morto (Before the devil knows you're dead). O filme que se segue a Fear strikes out é A taberna das ilusões perdidas (The rate race, 1960), baseado em peça de Garson Kanin, com Tony Curtis e Debbie Reynolds.
Rock Hudson é convidado para estrelar Labirinto de paixões (The spiral road, 1961), que tem, ainda, Gena Rowlands (a atriz estupenda e esposa de John Cassavetes), Burl Ives, entre outros menos votados. Na verdade, um melodrama, que viu-se no Rio, no poeira Politeama, quando este saudoso cinema, que ficava no Largo do Machado, passava programa duplo, um vehicle para Rock Hudson. No máximo, uma direção eficiente do ponto de vista artesanal.
O grande Mulligan põe sua manga de fora no ano seguinte, em 1963, em O sol é para todos (To kill a mockinbird, 1962), filme que deu o Oscar de melhor ator a Gregory Peck no papel de um advogado humanista que defende um negro. A ação se localiza numa cidadezinha de Alabama em 1920, racista e preconceituosa. O negro é injustamente acusado de violentar uma branca. Tudo é contado pelo ponto de vista do casal de filhos do advogado e há um tom evocativo que Mulligan viria a adotar em outros de seus filmes. Com Mary Badham, Rosemary Murphy. Baseia-se num livro escrito por Herman Lee, amiga de Truman Capote.
Em 1963, Mulligan resolve fazer um filme in loco em Nova York: O preço de um prazer (Love with the proper stranger, 1963). Cineasta oriundo da televisão, como já aqui se referiu, com os talentosos Frankenheimer, Lumet, há, neste filme, um enfoque que se pretende menos hollywoodiano e com certa influência do neo-realismo italiano (Hitchcock, o grande Hitchcock, o mestre dos mestres, já fizera uma experiência quase neo-realista em O homem errado (The wrong man, com Henry Fonda como o músico que é confundido com um assassino e, no final, quando a polícia descobre o verdadeiro culpado, e os dois se encontram face a face, Fonda tem pena do homicida, porque sabe que vai passar pelo mesmo calvário que ele.) Mas O preço de um prazer é sobre uma caixeira do Macy’s, que não é outra senão a sublime Natalie Wood, que engravida depois de passar uma noite com um estranho (Steve McQuenn). Ela, então, pede sua ajuda para encontrar um médico para que realize um aborto. A partitura é de Elmer Bernstein e a fotografia (em expressivo preto e branco), de Milton Krasner.
Ainda em 1965, Mulligan, apesar de já ter demonstrado ser um realizador acima da média, fora notado apenas por alguns exegetas da crítica francesa, e certos hermeneutas americanos como Andrew Sarris e Peter Bogdanovich, mas, neste ano, realiza O gênio do mal (Baby, the rain must fall), aproveitado o astro (McQuenn) do filme anterior, que, aqui, é um homem que sai da prisão, volta para a mulher (Lee Remick) e tenta ganhar a vida como guitarrista e cantor. Mas o xerife da cidade (Don Murray) vem a se apaixonar por ela, criando, com isso, o conflito básico. O afamado Glenn Campbell aparece no conjunto no qual McQuenn toca.
O touch mulliganiano está acesso com sensibilidade e a devida evocação na obra que se segue: À procura do destino (Inside Daisy clover, 1966), cujo tratamento temático é avançado para a época. Mulligan procura fazer de sua personagem principal, uma estrela juvenil problemática de Hollywood, o protótipo de todas as atrizes que tiveram problemas na sua trajetória (de Judy Garland a Marilyn Monroe): o patrão tirânico, o marido homossexual, a avó psicótica. Com Natalie Wood, em seu esplendor na relva, Robert Redford, Christopher Plummer, colhendo os louros como o Capitão Trapp de A noviça rebelde/The sound of music, e a sempre inexcedível Ruth Gordon.
Subindo por onde se desce (Up the down staircase, 1967) é também um filme in loco, que procura enfocar a problemática de uma professora de escola de periferia de Nova York, Sandy Dennis, obra que procura sempre um tom realista no desenvolvimento de sua narrativa. Ainda que não seja um grande filme, lembra Sementes da violência, de Richard Brooks, com Glenn Ford e Sidney Poitier.
Os anos 60 se aproximam do fim e Maio de 68 se anuncia. Mas Mulligan, alheio ao que se passa, se refugia no western, mas western de primeira linha, um de seus melhores filmes: A noite da emboscada (The stalking moon, 1969), com Gregory Peck, militar do exército que, prestes a se aposentar, encontra, desamparados, uma mulher (Eva-Marie Saint) e seu filho, fruto de uma relação com apache violento, e decide transportá-los a lugar seguro, mas o índio, ao tomar conhecimento, resolve perseguí-los. A perseguição, num desenvolvimento que faz lembrar, tal a tensão, um thriller eletrizante, em nenhum momento faz aparecer o apache. Tudo é tensão, atmosfera, clima. Uma direção de brilhantismo indiscutível.
Em 1970, porém, volta-se aos jovens contestadores, apoiando-se num argumento bem de acordo com sua época contestatória e faz uma espécie de documento sociológico em O caminho da felicidade (The pursuit of happiness). Michael Sarrazin é um rebel without a cause que, com seu carro, para escapar de pagar o estacionamento, mata um operário e vai para trás das grades, mas foge e, com sua namorada (Barbara Hershey) empreendem uma fuga alucinante que parece não ter fim num autêntico road movie.
E vem Houve uma vez um verão (Summer of ’42, 1971), obra delicada e feita com sensibilidade sobre a iniciação sexual de um adolescente (Gary Grimes) que, num verão de 1942, quando os Estados Unidos entram em guerra, seduz a esposa (Jennifer O’Neil, carioca de nascimento, que Howard Hawks, por causa deste filme, aproveitaria em seu derradeiro western, Rio Lobo, ao lado de John Wayne) de um oficial que está ausente envolvido no conflito bélico de então. Mulligan conduz o relato com extrema finesse e o filme é uma mostra da vacuidade de certas mulheres que, deixadas sozinhas por circunstâncias alheias à sua vontade, ficam ao relento do desejo e das paixões. Há um tom evocativo que o cineasta repete com plena consciência de suas possibilidades poéticas, principalmente quando a partitura é de um maestro como Michel Legrand. E a fotografia de Robert Surtees é um assombro.
Talvez não exista um filme que trata da maldade embutida na infância do que A inocente face do terror (The other, 1972). Ambientado em Connecticut, em 1935 – e novamente aquele atmosfera de evocação tão peculiar a Mulligan, dois garotos gêmeos se deparam com a maldade e a perversidade. A mise-en-scène do realizador atesta o seu vigor, a sua singularidade, a sua marca no cinema americano. Mas o melhor, por incrível que possa parecer, ainda estaria por vir: Jogos do azar, testamento do cineasta, uma obra de densidade exemplar, um pulsar envolvente, magistral, cinema puro na sua procura de decifrar e fazer ver a beleza possível de uma mise-en-scène. O intérprete principal de Jogos de azar (The nickel ride, 1974) é Jason Miller, que viria, neste mesmo ano, a fazer um padre em O exorcista, de William Friedkin.
Encerra-se esta breve homenagem a Robert Mulligan com as palavras de Carlos Reichenbach, que fecha com chave de ouro a trajetória desse importante realizador, destacando, o Comodoro, a beleza de um filme como The nickel ride.
“É curioso notar que outros cineastas da mesma geração, como Robert Mulligan, por exemplo, que não foram tão incensados pela crítica no começo, acabaram realizando uma obra menos pretensiosa e muito mais coerente. No caso de Mulligan, o sucesso popular e o prestígio em Hollywood, só veio a acontecer no meio da carreira, com Houve uma vez no verão (Summer Of 42) e A inocente face do terror (The other), ambos de 72, embora ele já tivesse realizado filmes mais notáveis como Fear strikes out (Vencendo o medo - 57), To kill a mockingbird (O Sol é para todos - 63), Baby, the rain must fall (título deslumbrante, burramente "traduzido" como O gênio do mal - 64), Inside daisy clover (À Procura de um destino - 66), Up the down staircase (Subindo por onde se desce - 67) e The pursuit of happiness (uma ode radical ao inconformismo, lançada no Brasil com o título de O caminho da felicidade - 70). É verdade que, após o sucesso com os dois filmes citados acima e o fim de sua parceria com o produtor Alan Pakula - que também se tornou diretor de cinema, mas num estilo mais cool e menos arrojado que Mulligan - sua obra caiu em desgraça. Embora tenha produzido e dirigido o filme mais anticomercial de Hollywood, The nickel ride (Jogos de azar - 74) - um drama chumbo grosso e depressivo sobre viciados em jogo, fotografado inteiramente com iluminação vertical onde mal se vê os olhos do atores - encerrou a carreira com uma péssima adaptação ianque de Dona Flor E Seus Dois Maridos e o chorumela Clara´s heart."