segunda-feira, 29 de julho de 2013

CIDADÃO WALTER



Walter da Silveira e Nelson Pereira dos Santos



Por André Setaro

Os quatro volumes fundamentais do pensamento cinematográfico de Walter da Silveira já foram lançados há quase dois anos. Patrocinado pelo Governo do Estado, O eterno e o efêmero, título do livro que se inspirou no seu discurso de posse na Academia Baiana de Letras em 1968, foi apenas distribuído e enviado para entidades ligadas ao cinema e a personalidades da área. Difícil adquiri-lo nas livrarias, porém. Obra de tal porte e importância deveria ter sido bem distribuído para estar acessível a todos os interessados. A organização, primorosa, um trabalho árduo de pesquisa do cineasta e escritor José Umberto Dias, autor de Revoada. Mas vamos, aqui, traçar um panorama sobre Walter da Silveira e falar um pouco de um seu outro livro de ensaios sobre a arte do filme: Fronteiras do cinema.

Com 19 ensaios, Fronteiras do Cinema (Edições Tempo Brasileiro, 1966), livro de Walter da Silveira (1915/1970), abriga escritos publicados em diferentes ocasiões na imprensa baiana. O autor selecionou-os e resolveu reuni-los numa publicação tendo em vista que “a crítica cinematográfica tem certamente uma efemeridade maior do que as outras e a dimensão do livro é uma tentativa de permanência”. Destacam-se, em Fronteiras do Cinema, dois momentos fundamentais para a compreensão do pensamento do ensaísta em relação ao processo de criação no cinema: Crítica e Contracrítica, o primeiro ensaio, que abre o livro – um severo artigo sobre a responsabilidade daquele que julga a obra-de-arte, “esta responsabilidade humana e social” – e O instrumento do humanismo, o derradeiro, um brado retumbante sobre a necessidade de o veículo cinematográfico ter sempre em vista, como elemento essencial, a figura humana.

Tem-se, em Fronteiras do Cinema, um dossiê analítico acerca das mais variadas vertentes da estilística cinematográfica, passando pela entrevisão de Ingmar Bergman, ao ressaltar, neste, a renovação da natureza unanimista do cinema, às discussões entre as fronteiras do cinema e da literatura (Dostoievski ou Visconti?), às noites de um Federico Fellini, até atingir um ensaio que indaga da contribuição do cinemascope para a estética do cinema, além de desmistificar e dimensionar a real importância de filmes como Fantasia, de Walt Disney, e Orfeu do Carnaval, de Marcel Camus. O livro, entretanto, não pára por aqui. Contém mais - e muito mais.

Do “mestre do suspense”, Walter não perdoa suas vertigens, sua aparente exterioridade, no único ensaio, a nosso ver, infeliz do grande ensaísta, posto que, em Hitchcock, o argumento é concessão enquanto que a mise-en-scène, mensagem. Até que ponto a arte cinematográfica foi capaz de transportar as torrentes verbais, do texto shakespeariano? Eis outro artigo fundamental do mestre Walter, o qual não descuida também dos vôos poéticos e da irreverência do solitário Monsieur Hulot, personagem do comediante francês Jacques Tati. Ou da efemeridade dos sentimentos do cinema de Michelangelo Antonioni. Ou da poética de Jean Cocteau. Ou da oralidade em Alan Renais.
E o cinema brasileiro? Que Walter da Silveira demonstrara tanto interesse, durante a sua trajetória de crítico, podendo-se mesmo afirmar que fora um grande animador de cinematografia baiana e nacional? O cinema brasileiro viria em publicação especial, que a fatalidade do destino não permitiu. Mas, em 1978, com a edição póstuma de História do Cinema Visto da Província, pela Fundação Cultural do Estado, com organização, estudo e ensaio de José Umberto Dias, resgata-se para a permanência em livro, um pouco da pesquisa feita através do tempo, num trabalho de verdadeiro arqueólogo da arte fílmica, dos primórdios do cinema na Bahia. E, sob ótica de um bom provinciano, Walter descobre, aos poucos, o cinema internacional, que vai despontando na cidade do Salvador. Também, poder-se-ia perguntar: e Charles Chaplin, a quem Walter tanto amara? Carlitos, ainda em tempo de vida do crítico, é objeto de um estudo definitivo sobre a sua filmografia em Imagem e Roteiro de Charles Chaplin, que Walter lança, em agosto de 1970 – pouco antes de morrer (o que ocorre no mesmo ano) – no Cine Bahia, com uma exibição especial de O Garoto (The Kid) em sua homenagem.

Dos 42 anos da publicação de Fronteiras do Cinema, décadas se passam e o cinema brasileiro se encontra órfão de Walter da Silveira há 38 – e é impressionante como a nova geração desconhece Walter da Silveira, que se restringe, hoje, a um nome dado a uma sala alternativa de programações cinematográficas, confirmando, com isso, a falta de memória característica da contemporaneidade. O apogeu criativo do cinema moderno, entretanto, Walter presenciara, pois este se dá lado a lado com a formação cultural do grande ensaísta. Ainda menino, Walter conhece a figura de Carlitos, assiste à transformação da estética da arte muda para o cinema falado, acompanha o desenvolvimento narrativo de um Orson Welles (Cidadão Kane), de um Sergei Eisenstein, contempla a nova postura ética da cinematografia com a eclosão do neo-realismo italiano. E as revoluções sintáticas, inauguradoras de uma nova sintaxe, com Michelangelo Antonioni, Alain Resnais e Jean-Luc Godard, entre outros. Porque, nascido na segunda década do século XX, Walter da Silveira tem o privilégio de ser quase contemporâneo das transformações estilísticas que marcaram a arte do filme.

Platéia e balcão do Guarany lotados. Sábado de manhã de 1965. A maioria dos espectadores constituída de estudantes do Central, que, filando aulas - sábado, naquele tempo, também tinha aula, adquiria o conhecimento do filme como arte. Uma turma, porém, de capadócios, que estava ali, naquela sessão, apenas para perturbar, gritava, ria, e assobiava diante dos passos poéticos de Hiroshima, mon amour. Num determinado momento, Walter da Silveira, temperamental como era, levantou-se e solicitou que a projeção fosse interrompida e que as luzes da sala se acendessem. Diante da platéia, que ficou silenciosa, Walter deu tremendo esporo nos jovens assanhados, fazendo-lhes ver que Hiroshima era uma obra de arte e merecia todo o respeito e todo o silêncio.

Walter da Silveira não admitia que alguém saísse no meio de um filme. Ficava aborrecido e o pecador restava, depois, sem moral com o mestre. Qualquer conversinha lateral também era reprovada pelos olhos de Walter da Silveira.Quem quer conversar que vá para a sala de espera ou saia do cinema, costumava dizer.

A importância do Clube de Cinema da Bahia, na formação de platéias, na deflagração do próprio “Ciclo Bahiano” (entre 1959 e 1963, filmes genuinamente baianos são realizados: Redenção, A Grande Feira, Tocaia no Asfalto, etc.), e como centro difusor da cultura cinematográfica, é inquestionável. A liderança de Walter proporciona a muitos interessados pela “sétima arte” uma espécie assim de descoberta da importância do cinema como veículo de expressão artística.

Vive-se, nos anos 50, na urbis soteropolitana, sob influência do espetáculo norte-americano, que impõe uma linguagem e uma forma de ver o discurso narrativo. Vive-se, portanto, sem a possibilidade de contemplação de outras conquistas da linguagem cinematográfica, porque o mercado, dominado pelas companhias americanas, não oferece outra opção que não seja o espetáculo narrativo tradicional, imperando o star system, a idolatria, o consumo desenfreado – não como agora, diga-se logo e de passagem.

Com o Clube de Cinema da Bahia, Walter da Silveira possibilita aos baianos o conhecimento dos filmes neo-realistas italianos (Roma Cidade Aberta, Paísa, ambos de Roberto Rossellini, Ladrões de Bicicleta, Umberto D, Milagre em Milão, todos de Vittorio De Sica), do realismo poético francês (Les enfants du paradis, de Marcel Carné), do cinema de Jean Renoir, da cinematografia soviética e dos discursos estéticos de um Sergei Eisenstein (O Encouraçado Potenkin, Outubro, Ivan o terrível), etc, etc, etc. A contribuição primordial de Walter neste período está em ter despertado muitos cinéfilos para a descoberta do cinema como uma linguagem autônoma, como um verdadeiro e poderoso veículo de expressão artística. Dentre os vários alunos que teve, um destaca-se sobremaneira: Glauber Rocha, que, conforme o mesmo confessa em alguns de seus escritos, “aprendeu cinema com Dr. Walter da Silveira”.
É o próprio Walter quem conta a inauguração do Clube (A Tarde: “Origem e fundamento do Cinema de Arte da Bahia”, em 1.03.67): “Fundado em 27 de junho de 1950, no auditório da Secretaria da Educação, o Clube de Cinema da Bahia dava início às suas atividades culturais projetando num velho aparelho, quase sem uso, com perigo de queimar a fita, Os visitantes da noite (Les visiteurs du soir), de Marcel Carné. Existia uma cena de dança medieval em que, por processo de técnica cinematográfica, os gestos e os sons se tornavam crescentemente lentos até vir a imobilidade total dos atores: o público pensou num defeito do projetor, exprimindo seu desencanto por ver interrompida a estória num momento de tamanha beleza, mas, logo depois, sorria dele próprio ante o prosseguimento dramático. E se tratava de público da mais alta qualidade, começando por Anísio Teixeira, que, Secretário da Educação, cedera o auditório ao Clube, prestigiando-lhe a fundação”.

Segundo recordações de Walter, o auditório era pequeno para os espectadores que, à porta, se inscreveram como sócios. Cerca de duzentos para uma sala de cem. “Não havia imaginado este êxito, Carlos Coqueijo da Costa e eu, quando fundamos o cineclube, seguindo os modelos franceses da época. Sabíamos que nossa cidade poderia classificar-se entre as mais atrasadas cinematograficamente do mundo, desconhecendo, sobretudo o cinema europeu, mas não supúnhamos que tanta gente estivesse como nós a procura do tempo perdido”, escreveu ele no mesmo artigo.

A segunda sessão tem de ser numa sala comercial: o “Gloria” (hoje “Tamoio”). No primeiro domingo de julho. De manhã. Até aquela data nenhum exibidor pensara em matinais, o Clube de Cinema criava um novo horário. E às 10 horas todas as cadeiras estavam ocupadas para a projeção de Desencanto (Brief-encounter), o extraordinário filme inglês de David Lean. O cineclubismo entra para a vida da cidade. O público de todas as manhãs de domingo, além de versátil, compunha-se das figuras mais representativas da cultura baiana, escritores, artistas, professores, universitários, advogados, médicos e estudantes.

Com menos de um ano, em abril de 1951, o Clube de Cinema da Bahia realiza um Festival Internacional do Filme de Curta-Metragem, com a participação de doze países. Até então, no Brasil, nada se fizera mais organizado. Um júri de alto nível é eleito e suas votações têm um caráter tão polêmico quanto as discussões que travam na platéia sobre as fitas que devem ser premiadas.

Como conferencistas convidados estão Alberto Cavalcanti, Vinicius de Moraes, Alex Viany, Salvyano Cavalcanti de Paiva e Luís Alípio de Barros. Suas palavras, ditas no palco do “Guarany”, também se tornam polêmicas, com o jogo cruzado de perguntas e respostas a propósito de todos os temas cinematográficos. Walter da Silveira contou: “Tenho uma carta de Cavalcanti que releio sempre com orgulho, embora me entristeça recordar como esse grande homem de cinema tão admirado por todos os historiadores mundiais por sua contribuição para o cinema francês dos anos 20 e para o cinema inglês dos anos 30 e 40, foi praticamente banido no Brasil; nessa carta, Cavalcanti fala do público daquele festival como dos melhores que conheceu em toda parte. E igualmente Vinicius: mais do que os filmes, não obstante os clássicos, julgou que a platéia merecera o prêmio, pela quantidade e qualidade dos espectadores. Em tão pouco tempo, o Clube de Cinema formara um tipo de público para dez dias seguidos somente de curtas metragens”.

Nos anos 60, o “Clube” passa a funcionar aos sábados, de manhã, no Cine Liceu. Depois, em 65, muda-se para o Cine Guarany, também aos sábados, fazendo confluir para suas sessões cinéfilos e estudantes, universitários e secundaristas, os quais, após os espetáculos, servem-se do “Bar e Restaurante Cacique” para um bate-papo em torno dos filmes apresentados, numa época em que ainda se pode transitar pelo centro da cidade, quando a Bahia ainda oferece a oportunidade de se “tê-la” característica e provinciana.

Dois anos depois, reformando-se o antigo “Popular” (na Rua da Oração, paralela a Saldanha da Gama, onde fica o Cine Liceu), Walter concentra as atividades cineclubistas nesta sala exibidora, inaugurando a programação em junho de 1967, com Terra em Transe, de Glauber Rocha, numa homenagem ao dileto cineclubista que atinge, então, dimensão internacional. As projeções tornam-se ininterruptas, com sessões contínuas, modelando-se Walter no esquema programático do Cine Paissandu, do Rio de Janeiro. A experiência, no entanto, por causa das injunções do mercado exibidor, não dá certo.

Em 1968, o Clube de Cinema transfere-se para a Reitoria, com projeções semanais, aos sábados pela noite. Neste mesmo ano acontece, por iniciativa de Walter, um Curso Livre de Cinema, que se estende por todo o ano, com aulas duas vezes por semana. O patrocínio é da Universidade Federal da Bahia. Walter da Silveira realiza seu sonho de dar um curso completo sobre a história e a estética da “sétima arte”. Além de um estilista admirável, irrepreensível nas suas construções lingüísticas e na manipulação da sintaxe (como tão bem atestam seus escritos), Walter da Silveira possuía o dom da oratória. Antes de cada filme, discorria sobre o cineasta e a importância da obra fílmica, envolvendo a platéia com a sua “oralidade” transparente e vivaz. O ano de 1970 surge fatídico, pois vem a falecer em novembro.

Há críticos e críticos. No prefácio de Fronteiras do Cinema, diz Jorge Amado: “Não farei a Walter da Silveira a injustiça de chamá-lo de crítico de cinema, de tal maneira a expressão se tornou um insulto, um nome feio”.

Estamos ante um ensaísta de cinema, continua Jorge Amado, com estatura de historiador de cinema – e o caminho da história da arte cinematográfica certamente será por ele palmilhada. Um grande ensaísta de cinema pela seriedade do conhecimento, pela decência de sua posição feita de amor pela criação do homem no plano da cinematografia, por seu livre pensamento, pela intransigência de seus pontos de vista que são, ao mesmo tempo, resultados de uma visão maleável e flexível, contendo uma realidade de experiência vivida (“a crítica que não refletir essas vivências de desespero – escreve ele sobre o drama do cinema – arrisca-se a parcial e injusta”).”

Pelo muito que Walter da Silveira estudou, viu, contemplou, degustou e usufruiu o prazer estético-cinematográfico, pode se dizer que pouco deixou em termos de bibliografia sobre sua arte predileta. A maior parte de seus escritos encontra-se, entretanto, espalhada pelos jornais baianos nos quais colaborava com relativa intensidade, enquanto não se encontrava, como advogado trabalhista, atuando em defesa dos pobres e oprimidos. Assim, este dublê de advogado e ensaísta de arte, pai de prole numerosa, bastante devotado à família, havia de desdobrar-se para, nos intervalos das lides judiciais, refletir sobre a natureza da arte do filme, sobre o específico cinematográfico.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

20 momentos antológicos do cinema

Maria Schneider e Jack Nicholson em O passageiro: profissão repórter (1975), de Michelangelo Antonioni

Por André Setaro

   Sem ordem de importância, aqui alguns momentos antológicos do cinema.

     1.  OITO E MEIO (Otto e mezzo, 1963), de Federico Fellini. Quando todas as esperanças pareciam                 impossíveis, Guido Anselmi se reanima e dança, com todo o elenco, o balé burlesco que dá fecho ao        filme, com todos dançando contentes e de mãos dadas sob o império sonoro de Nino Rota
  1. O PASSAGEIRO: PROFISSÃO REPÓRTER(Professione: reporter/The passenger, 1975), de Michelangelo Antonioni. A cena começa num quarto de hotel, a câmera sobre um tripé. Nicholson e a namorada que ele encontrou ao assumir a identidade de Robertson (Maria Schneider) conversam. O quarto é no andar térreo do hotel, e ao fundo uma ampla janela com grades de ferro dá para a praça lá fora. Sozinho no quarto, Locke acende um cigarro e se deita, e entãotem início o longo plano final. A câmera se aproxima lentamente da janela, passa pelas grades, e continua a filmar lá fora até que voltando ao quarto o encontra morto.
  2. OS BRUTOS TAMBÉM AMAM (Shane, 1953), de George Stevens. Cena da morte de Paredón pelo pistoleiro Wilson. Paredón (Elisha Cook Jr) se aproxima, em travelling, da varanda na qual está o pistoleiro Wilson (Jack Palance). Corte. Wilson se levanta e começa a calçar as suas luvas. Paredón lhe desafia e recebe um tiro que o joga longe no meio da lama. Stevens declarou que usou um tiro de canhão. 
  3. A MARCA DA MALDADE (Touch of evil, 1958), de Orson Welles. O plano-sequência inicial. Com uma só tomada, Welles percorre uma cidadezinha fronteiriça com uma câmera ágil até a explosão de uma bomba perto de um posto de gasolina, encontrando Charlton Heston e Janet Leigh. Na versão espúria lançada comercialmente, todo o plano é aproveitado para a colocação dos letreiros. Mas a versão restaurada mostra que o autor não usou, nesta introdução, nenhum sinal gráfico. 
  4. O PROFESSOR ALOPRADO (The nutty professor, 1963), de Jerry Lewis. Cena da saída da buate depois da transformação. Usando uma poção mágica feita por ele, o tímido professor Kelp se transforma no engomado galã Buddy Love. Quando este sai da buate, em câmera subjetiva (em lugar de Love), andando,  o que se contempla são mulheres e homens surpresos e extasiados com o que estão a ver.
  5. CIDADÃO KANE (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles. Um travelling mostra os pertences de Charles Foster Kane empilhados e a impressão que se tem éa de se estar a ver uma metrópole com seus arranha-céus. O percurso do travelling tem seu fecho num plano de detalhe do trenó onde se encontra inscrita a palavra Rosebud, cujas letras ardem e se desmancham pelas chamas. 
  6. O ANO PASSADO EM MARIENBAD (L'année dernière a Marienbad, 1962), de Alain Resnais. Ostravellings se sucedem na mansão, a câmara passeia pelos seus longos e intermináveis corredores, à procura de um cinema que se faz como um processo de investigação do universo mental. Delphine Seyrig salta na cama imensa, como se fosse um pássaro numa gaiola dourada.
  7. SUSPEITA (Suspicion, 1942), de Alfred Hitchcock. Cary Grant, numa angulação expressionista, sobe a escada, uma grande escada meio circular, com um copo de leite na mão. O espectador suspeita que o leite esteja envenenado e ele vá matar a mulher. O realizador colocou uma lâmpada dentro do copo para fazê-lo mais sugestivo.
  8. ACOSSADO (A bout de souffle, 1959), de Jean-Luc Godard. Ferido, fatigado, Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo) deambula por uma rua de Paris enquanto a câmera, em travelling, o acompanha até que, ao final da escapada, tomba. Todo o itinerário tem um forte acento jazzístico.
  9. A LARANJA MECÂNICA (clockworke orange, 1971), de Stanley         Kubrick. Enquanto Alex e seus companheiros espancam e torturam o casal de escritores com uma violência inaudita, estuprando a mulher, o que se ouve é uma canção suave, a deSingin'ng in the rain. A narrativa, aqui, contraria a fábula.
  10. FRENESI (Frenzy, 1972), de Alfred Hitchcock. A prdução de sentidos sendo feita pelo travelling, que acompanha Barry Foster, o estrangulador que o público játem conhecimento, a entrar no edifício acompanhado da namorada de John Finch, o falso culpado. De repente, a câmera pára no meio da escada e faz um travelling a derrière (para trás) e sai do prédio. O grito da mulher é abafado pelo vozerio do mercado em frente.
  11. RASTROS DE ÓDIO (The seachers, 1956), de John Ford. Finda a jornada, John Wayne traz de volta Natalie Wood para o lar. A càmera, no último plano, plantada dentro da casa, apenas recebe a claridade que vem do fora e a porta aberta, que se destaca como silhueta na escuridão. Todos entram felizes, alegres, com o retorno. Menos John Wayme, o Tio Ethan, que, cumprida a missão, caminha para fora, deambulando, sem destino.
  12. OUTUBRO (Oktiabr, 1927), de Sergei M. Eisenstein. Kerensky sobe os degraus do palácio, mas retorna sempre ao mesmo ponto, enquanto as legendas citam suas inumeráveis atribuições ditatoriais e, "desafiado", Kerensky é confrontado com divindades africanas, budistas, barrocas, cristãs etc.
  13. LUZES DA CIDADE (City lights, 1930), de Charles Chaplin. Pelo toque nas mãos de Carlitos, a florista, já operada da vista graças a ele, reconhece o seu benfeitor. E o close up final de Chaplin é o mais enigmático de toda a história do cinema, a atingir a tragédia da condição humana.
  14. ASSIM ESTAVA ESCRITO (The bad and the beautiful, 1953), de Vincente Minnelli, Depois da conferência com Walter Pidgeon, Lana Turner, Barry Sullivam e Dick Powell, na saída da casa, não resistem a pegar um telefone externo para ouvir o que Pidgeon conversa com Kirk Douglas, que está disposto a trabalhar novamente com os três. Em plano fixo, Lana pega o gancho do telefone e o ouve primeiro, e os rostos de Sullivam e Powell vão surgindo nas laterais, curiosos também em saber o que está sendo dito. Final do filme: The end. Partitura exasperante de David Rastkin.
  15. PSICOSE (Psycho, 1960), de Alfred Hitchcock. A antológica sequência do chuveiro, quando Janet Leigh é esfaqueada. Durando pouco mais de um minuto, a cena possui quase cinqüenta tomadas, o que possibilita constatar que o processo de criação no cinema é uma ilusão. A sua fragmentação é radical e, nesse sentido, alguns ensaístas europeus comparam-na à escadaria de Odessa de O encouraçado Potemkin para a evolução da linguagem cinematográfica.
  16. O LÍRIO PARTIDO (Broken blossoms, 1919), de David Wark Griffith. Lilian Gish se contorcendo dentro de um armário cuja porta o boxeador destrói a golpes de machado, antes de espancar a menina com o cabo de um chicote.
  17. VAMPYR (1932), de Carl Theodor Dreyer. As cenas vistas por um cadáver transportado em seu caixão, os olhos mortos fixos no céu e nos tetos.
  18. O ENCOURAÇADO POTEMKIN (Bronenosetz Potemkin, 1925), de Sergei Eisenstein. A Escadaria de Odessa. A multidão nos degraus aclamando os marinheiros e, de repente, os primeiros tiros de fuzis; as botas dos soldados passando por cima dos cadáveres; o menino morto, a mãe que torna a subir a escadaria trazendo o filho já sem vida; os fuzileiros descendo a escadaria; uma mulher, no alto da escadaria, atingida, e seu cadáver empurrando para frente o carrinho do bebê…
  19. DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL (1964), de Glauber Rocha. A matança dos beatos em Monte Santo.