quinta-feira, 29 de agosto de 2013

ENTREVISTA COM GLAUBER ROCHA

UM POUCO DE TRUFFAUT



Por André Setaro

Ao contrário do cinema de seus companheiros da Nouvelle Vague – Godard, Rohmer, Chabrol, Rivette, Resnais…-, racionalista e cerebral, o de François Truffaut é feito com a emoção e o coração, com extrema sensibilidade e uma simpatia incomum pelos seus personagens, que são tratados com ternura, generosidade e afeto. O crítico ferrenho, radical, intransigente, das revistas Cahiers du Cinema e Arts et Spetacules, que ataca em seus escritos o cinema clássico francês e o realismo psicológico de acadêmicos como Claude Autant Lara, Julien Duvivier, entre outros, sofre uma espécie de metamorfose quando passa a realizar filmes, transformando-se num cineasta terno e amável.
Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, cuja tradução literal é Os Quatrocentos Golpes), além de inaugurar a Nouvelle Vague – juntamente com Acossado, de Godard, Hiroshima, de Resnais… -, dá início à carreira de Truffaut como realizador de longas. E, neste 2009, a distância deste filme é de exatos 50 anos. Aqui também começa o ciclo dedicado a Antoine Doinel (sempre interpretado por Jean Pierre Léaud), um personagem com evidentes elementos autobiográficos, através do qual aborda o rito de passagem da infância à idade adulta. É a nostalgia da adolescência que Truffaut reflete nos filmes do ciclo Doinel, a fugacidade do tempo e a ânsia de amar, a chegada à idade adulta, o casamento… (Antoine et Colette, 1982, episódio de O Amor aos Vinte Anos/L'Amour a vints ans; Beijos Proibidos/Baisers Volés, 1968, Domicílio Conjugal/Domicile Conjugal, 1970, e; Amor em Fuga/L'Amour en Fuite, 1978).
(Em Os Incompreendidos, Truffaut, avant la lettre, considerando a época, alude à Nouvelle Vague e a seu amigo e colega Jacques Rivette, quando os pais de Antoine – que, por sinal, nos outros filmes do ciclo estão sempre 'indo ao cinema' – decidem ir ver Paris Nous Appartient, de Rivette, filme emblemático, apesar de pouco conhecido do movimento francês, e, de volta, no automóvel, consideram-no 'muito bom' – melhor homenagem impossível).
Romântico, sem, contudo, abandonar a visão irônica e dolorosa das relações afetivas, Truffaut tem a sua obra-prima já na terceira incursão longametragista: Uma Mulher para Dois/ Jules et Jim (1961), crônica de uma relação triangular (Oskar Werner, Jeanne Moreau…) baseada no texto literário de Henri Pierre Roché, autor que lhe serviria de inspiração para realizar, dez anos depois, abordando a mesma temática da dificuldade de amar, As Duas Inglesas e o Continente/ Les Deux Anglaises et le Continent (1971). O problema da comunicação no amor, aliás, do amor impossível,en fuite, é uma constante na filmografia de Truffaut, como revelam A História de Adele H/ L'Histoire de Adele H (1976), com Isabelle Adjani, A Mulher do Lado/ La Femme de la Cote (1981), entre outros.
Se seus colegas da Nouvelle Vague procuram elaborar uma linguagem que desconstrói o discurso cinematográfico tradicional, revertendo os cânones da lei de progressão dramática griffithiana, François Truffaut não pretende nunca em seus filmes dissolver a estrutura lingüística, mas, ao contrário, busca desesperadamente a fluência narrativa, o toque mágico capaz de envolver o espectador a fazê-lo pensar que não está no mundo. É verdade que brinca com a metalinguagem, mas num sentido de reverência e ao cinema como em A Noite Americana/ La Nuit Americaine (1973), belíssima homenagem ao processo de criação cinematográfica onde Truffaut comparece como ele mesmo no papel de um diretor que faz um filme. O filme dentro do filme, portanto.
Outra vertente temática na obra truffautiana é a dominante policial, influência, na certa, de sua admiração por Alfred Hitchcock – seu livro de entrevista com este, Hitchcock/Truffaut, da Brasiliense (e, agora, em outra edição pela Companhia das Letras), é, simplesmente, uma aula magna de cinema. Há Hitchcock em Fareinheit 451 (1966), que faz na Inglaterra, com o mesmo Oskar Werner de Jules et Jim, baseado na ficção-científica de Ray Bradbury. Outra obra alusiva ao mestre é A Noiva Estava de Preto/ La Mariée Était em Noir (1967), com Jeanne Moreau ou, mesmo, Tirez sur le Pianiste, segundo filme (1960), e A Sereia do Mississipi/ La Sirene du Mississipi (1969), no qual declara, através das imagens em movimento, a sua paixão momentânea, Catherine Deneuve, que trabalha, aqui, ao lado de Jean Paul Belmondo. E no seu canto de cisne De Repente num Domingo/ Vivement Dimanche (1984), cujo 'claro/escuro', proposital, vem em auxílio de uma proposta estilística em função do film noir francês. Sem esquecer o elaborado, como mise-en-scène, Um só pecado (Le peau douce, 1963).
Autor, porque dono de um estilo próprio, marcante, ainda que com um universo temático diversificado, François Truffaut, na sua filmografia, envereda por assuntos diversos, a exemplo de O Garoto Selvagem/ L'Enfant Sauvage (1970), filme sobre a luta de um médico, no século XIX, para 'domar', um menino bárbaro criado sem contato com a civilização – influência possível para Werner Herzog em O Enigma de Kaspar HauserNa Idade da Inocência/ L'Argent de Poche (1976), experiência na qual, repetindo Jean Vigo (Zero de Conduite), o universo que retrata é constituído somente de crianças. Sem esquecer O Último Metrô/ Le Dernier Metro (1980), uma volta ao passado, Segunda Guerra Mundial na França ocupada, para valorizar, numa situação-limite, a importância dos pequenos gestos.
Em todos os filmes de François Truffaut, um denominador comum: a narrativa que sobrepuja a fábula, a doce fabulação que advém de um sentido preciso de mise-en-scène, o touch truffautiano, sempre terno, apaixonado, capaz de levar ao espectador o prazer do autor com o que está a filmar e o prazer, imenso, de se assistir ao que se está a ver.

NA QUADRADA DAS ÁGUAS PERDIDAS

 Matheus Nachtergaele 

Por Sérgio Alpendre

Em "Na Quadrada das Águas Perdidas", de Wagner Miranda e Marcos Carvalho, temos basicamente Matheus Nachtergaele como um sertanejo que se desloca pela caatinga.
Não fica claro seu destino. E nem precisa. O importante, no caso, é o árido percurso que enfrenta. O sertanejo encontra cobras perigosas, onça, assombrações, come o que vê pela frente, faz escambo num pequeno mercado, e sonha.
Utilizando uma construção que prescinde de diálogos, mas abusa no uso de música, o filme fica entre o onírico e a crueza, o minimalismo e o excruciante. Mas não abraça nenhuma dessas características.
O estilo adotado é equivocadamente fragmentado, quando não vemos na tela a menor justificativa para picotar tanto as imagens. Sentimos que o tempo do personagem é outro, pede a contemplação, não a fragmentação. Os cortes brigam com o ritmo lento que ameaça se impor.
Incomoda a opção de mostrar cenas de diversos ângulos. Parece que não há confiança nas possibilidades de mise-en-scène, nos tempos mortos, na vagarosa luta pela sobrevivência desse bravo homem.
Um exemplo: logo no início, os diretores precisam de quatro planos, de ângulos diferentes, para mostrar uma curta caminhada de Nachtergaele. Uma câmera bem posicionada em simples panorâmica teria resolvido a cena de maneira muito mais eficaz e dramática.
Parece algo estritamente técnico, mas não é. A fragmentação desnecessária compromete a fluência narrativa.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

AINDA HA ESPAÇO PARA INVENÇÃO?

Beto Magno

Por André Setaro

Nascido oficialmente em 28 de dezembro de 1895, o cinema tem apenas 118 anos e meio. Para uma arte, em comparação com as outras, uma curta existência. Ainda que vários indivíduos procurassem quase simultaneamente projetar numa tela imagens em movimento, as honras da invenção do cinema couberam aos irmãos franceses Louis e Auguste Lumière, considerados aqueles que melhor desenvolveram o movimento das imagens num espaço plano. Há, no entanto, controvérsias. Nos Estados Unidos, o inventor da chamada sétima arte é Thomas Alva Edison, assim como os pioneiros da aviação são os Irmãos Wright e não nosso Santos Dumont.

O fato é que, descoberto o cinema em 1895, este passou muito tempo sem ter uma linguagem formada, específica. Os elementos determinantes desta (planificação, movimentos de câmera, angulação, montagem) foram sendo descobertos isoladamente, e sistematizados, com eficiência dramática, numa narrativa desenvolvida, pelo americano David Wark Griffith em dois filmes fundamentais: "O nascimento de uma nação" ("The birth of a nation", 1914) e "Intolerância" ("Intolerância", 1916). Assim, entre 1895 e 1914, quase 20 anos, portanto, a linguagem cinematográfica foi sendo "formatada" aos poucos.

Mas, estabelecida com Griffith, a linguagem ainda precisaria de aprimoramentos, de invenções que pudessem enriquecê-la. Considerado o pai da narrativa cinematográfica, Griffith é também, por conseqüência, o pai de sua linguagem do ponto de vista da montagem narrativa dotada de uma "lei" de progressão dramática "in crescendo" (apresentação, desenvolvimento do conflito, clímax e desenlace).

Ainda estava por vir Sergei Mikhalkovich Eisenstein para subvertê-la com a sua montagem de atrações baseada no choque das imagens, cujos exemplos mais eloqüentes estão em "Outubro" (1927), principalmente, "O encouraçado Potemkin" (1925), entre outros. Mas se Griffith e Eisenstein provocaram uma descoberta e uma evolução na linguagem e na estética do cinema, ainda se precisaria de algumas décadas para esta se consolidar.

A estética da arte muda, quando atingiu a sua perfeição, veio a ser destroçada pelo advento do cinema falado em 1927, ainda que alguns cineastas (a exemplo de Charles Chaplin e René Clair, dissidentes da aplicação sonora, tenham resistido até onde puderam).

A linguagem cinematográfica foi sendo "inventada" durante as seis primeiras décadas do século XX até se cristalizar com o ponto de partida do cinema moderno, que foi "Cidadão Kane" (1941), de Orson Welles, e as experiências da "desdramatização" propostas por Roberto Rossellini ("Viagem à Itália", 1953) e por Michelangelo Antonioni (neste, o domínio da antinarrativa na sua famosa trilogia constituída por "A aventura" ("L'avventura", 1959), "A noite" ("La notte", 1960), e "O eclipse" ("L'eclisse", 1962). O cinema, ainda recebeu contribuições valiosas de Alain Resnais (“Hiroshima, mon amour”, 1959, “O ano passado em Marienbad”, 1961) e Jean-Luc Godard (“Acossado”, 1959), Federico Fellini (“Oito e meio”, 1963), entre outros, para não se encher a coluna de citações.

O cinema, então, tem sua linguagem consolidada por volta de meados da década prodigiosa dos 60. Isto quer dizer: nesta época, terminou a era dos “inventores de fórmulas” e o que se pode verificar é que a linguagem, “criada”, passou a servir como um instrumento da “escrita” cinematográfica, mais como um instrumento de estilo do que, propriamente, de linguagem. O repertório “gramatical”, por assim dizer, evoluído, põe-se a serviço da explicitação temática, e a maneira de articular seus elementos é que vem a se constituir no estilo do cineasta. Mas, antes, os realizadores também não se exercitavam dessa maneira? Sim, mas havia uma brecha para se “inventar fórmulas.”

Assim como a linguagem escrita. O escritor aproveita-se de seu repertório lingüístico e, através deste, a depender de sua maneira de estabelecer a “escrita” pela manipulação sintática, é que extrai de seus textos, pela maneira de escrever, pelo seu estilo, uma “poética”. Ou não.

Os realizadores atuais constroem seus filmes buscando suas fontes num repertório já consolidado. E se este já se cristalizou em torno de 1965, há, portanto, 43 anos, o cinema não mais veio a apresentar uma obra que se situasse como ruptura, uma obra, como se diz, “divisora de água”.

Daí que o cinema entrou numa fase de citações e alusões a si próprio. Os filmes “falam” geralmente de si próprios, o que não ocorria em tempos pretéritos, antes da consolidação linguística citada. O que se verifica no cinema contemporâneo mais inteligente é este “olhar” para o passado da linguagem. Brian DePalma, utilizando-se de inspiração hitchcockiana, não o copia, como muitos pensam, mas se apóia nela para refletir sobre a natureza da própria arte do filme. Os irmãos Coen também fazem a mesma coisa, assim como muitos outros. Os “fratelli”, premiados com o Oscar deste ano por “Onde os fracos não têm vez” (“No country for old men”) gostam de revisitar gêneros e proceder, com o instrumental que a linguagem hoje oferece, a uma nova leitura deles, a exemplo de “O homem que não estava lá”, releitura do “film noir”, “Na roda da fortuna”, uma mistura da comédia de Frank Capra com ingredientes tirados de Billy Wilder, “O amor custa caro”, a comédia de Howard Hawks e de outros comediógrafos passada a limpo sob o prisma contemporâneo, mas com o aproveitamentos de todos os seus códigos essenciais, “E aí, meu irmão, cadê você?”, a Odisséia de Homero sob as vistas satíricas dos irmãos, etc.

O desconhecimento dos filmes essenciais do passado faz com que muitas vezes venha a se confundir alhos com bugalhos. E superestimar realizadores. Martin Scorsese é um bom cineasta, apesar de alguns atropelos. Mas não é nenhum gênio do cinema, muito pelo contrário. O que é Scorsese diante de um Robert Aldrich, para ficar num só exemplo? Clint Eastwood é excelente, mas longe se encontra de um John Ford ou um Howard Hawks. Paul Thomas Anderson é surpreendente e cheio de talento. Mas se pode compará-lo a um Robert Altman?

Bem, por estas e por outras é que se diz que o cinema morreu. O grande cinema, aquele do grande segredo do qual falava François Truffaut, o cinema dos inventores de fórmulas. Este, sim, está morto e enterrado.